Pesquisa sobre crossdressers brasileiras é segunda mais acessada no Periódicos UFRN
Crossdressers são pessoas que se vestem com roupas tradicionalmente associadas ao gênero oposto – Foto: P. Alencar.
Laura Medeiros e Paiva Rebouças - Sala de Ciência - Agecom/UFRN
O termo “cdzinha”, uma adaptação brasileira de “crossdresser”, refere-se a homens gays que, em certas ocasiões, se vestem e se apresentam como mulheres. Apesar de ainda enfrentar resistência e tabus sociais, essa identidade que transita entre os gêneros masculino e feminino tem ganhado destaque na academia. Prova disso é o artigo “Fazendo a linha cdzinha: performance transidentitária de crossdressers brasileiras em Lisboa“, de Pietra Azevedo, que se tornou o segundo mais acessado do Portal de Periódicos da UFRN em 2024, com cerca de 92 mil visualizações, evidenciando o crescente interesse pelo tema.
Publicado na Equatorial, revista do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS/UFRN), em 2020, o trabalho de Pietra investiga a performatização das cdzinhas. A pesquisadora, atual doutoranda do PPGAS, analisou a construção da feminilidade, a fluidez de gênero e a negociação dos corpos nesse trânsito entre masculinidade e feminilidade. A pesquisa se baseou em observação participante e participação observante realizadas em Lisboa, onde a distância do Brasil ofereceu um ambiente propício para que esses homens explorassem novas expressões de gênero, livres do peso do julgamento social e familiar.
Em 2017, durante um intercâmbio no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Pietra começou a acompanhar duas cdzinhas brasileiras, Jéssica e Karen. A proximidade levou a pesquisadora a vivenciar essa performance e a criar Pérola, identidade feminina que assumia nos momentos de montação. Esse método, conhecido como participação observante, permitiu que Azevedo experimentasse diretamente as dinâmicas de gênero e desejo que estruturaram a identidade cdzinha.
“Utilizei essa estratégia ao considerar que estava analisando uma realidade próxima, uma vez que, na época, também me identificava como ‘cdzinha’. Isso me permitiu observar criticamente os contextos em que participei. Foi precisamente em Lisboa que tive acesso a essa realidade”, afirma a autora.
O estudo analisou também a relação das cdzinhas com travestis, crossdressers tradicionais e drag queens. Segundo a pesquisa, cdzinhas construíram suas identidades a partir de um trânsito estratégico entre masculinidade e feminilidade, sem necessariamente reivindicar uma transição de gênero permanente. Esse deslocamento, muitas vezes, ocorreu por meio da montação – um processo que envolve maquiagem, roupas femininas e mudanças de postura –, permitindo que se apresentassem como mulheres em contextos específicos, sem abandonar suas identidades masculinas quando desmontadas.
Outro ponto central foi a relação entre montação, desejo e prostituição. Muitas cdzinhas relataram que a performance feminina ampliou as possibilidades de interação com homens cisgêneros, especialmente aqueles que não se identificavam como gays, mas demonstravam interesse por corpos feminilizados. Essa dinâmica, no entanto, se deu sob um forte código de sigilo e discrição, já que a maioria dos parceiros não assumia publicamente essas relações. Algumas cdzinhas utilizaram essa performance como estratégia de sobrevivência, ingressando no trabalho sexual como principal fonte de renda.
Essa investigação abre espaço para o debate sobre transidentidade e a interseção entre gênero e sexualidade, mostrando como a montação não se limitava à expressão de feminilidade, mas envolvia dinâmicas sociais complexas que iam da busca por desejo à necessidade de sobrevivência. A pesquisa reforça também a urgência de discutir o impacto da transfobia estrutural no Brasil, país que segue liderando o ranking mundial de assassinatos de pessoas trans.
“Fico contente em saber que as pessoas têm se permitido, cada vez mais, embora diante do conservadorismo, se identificar com uma categoria disruptiva relacionada no âmbito erótico e afetivo, evidenciando laços interessantes sobre as relações de gênero e sexualidades contemporâneas”, finaliza Pietra.